Intrínseca à literatura de Hoffman, há atuante o comportamento do homem, em seu caráter natural, quanto ao sensorial. Suas reações e inquietações são fruto da possibilidade ou não do olhar, como sensação física que engloba todos os sentidos suscetíveis ao corpo humano; sensações cuja origem é o mecanismo, representado pela personagem Olímpia, de O homem da areia.
O texto é permeado pela necessidade de se comprovar, através da visão, fatos cotidianos; não apenas aspectos físicos, mas também as sensações mais internalizadas. Os olhos, principalmente, seriam um espelho que tanto reflete o que está ao alcance da visão quanto revela ao mundo o que há por dentro do indivíduo. Logo no começo da narrativa, Natanael, em carta, relata a Lotar seu atual estado de ânimo face aos recentes acontecimentos
Se ao menos você estivesse aqui, poderia ver com seus próprios olhos; mas, tenho certeza, certamente vai me considerar um supersticioso visionário (pág. 113).
A carga semântica buscada por Hoffman, quanto à importância do olhar, é evidenciada na escolha vocabular, em períodos cuja situação do “ver” é posta como meio superior aos demais (as palavras, ditas e escritas, por exemplo) de se revelar verdades, em metáforas, como a da cortina, etc. A possibilidade de ver, não apenas enxergar, é tão fundamental, que mesmo a voz narrativa se adapta à idéia principal do texto: há a mudança do eu, onipresente, para um narrador, “o autor”, que teria, supostamente, evidenciado todo o desenlace do enredo. Essa mudança é traço da literatura fantástica, como estilo: as formas estruturais realistas são contestadas via a arte.
O encontro com um vendedor de barômetros, a quem expulsa, é desencadeador do processo de reflexão do jovem; ele se lembra de Coppelius, advogado, amigo de seu pai, que almoçava em sua casa com freqüência. Como se uma porta fosse aberta, jorra de sua memória recordações que o amedrontavam na infância: o homem da areia, criatura fantástica que, o então menino, associava ao advogado. O olhar retorna ao foco da narrativa quando Natanael rememora a história contada pela ama-seca; o personagem ficcional jogaria areia nos olhos das crianças que se recusariam a dormir.
A aparição do homem lhe manifestava sensação de mau presságio; o vendedor, Coppola, reanimara em Natanael a morte violenta do pai, supostamente causada por Coppelius. A partir desse fato, sucessivos acontecimentos interligados encaminham a figura do jovem, separado da família devido aos estudos, a Olímpia. A princípio, conhece Spalanzani, seu professor, pai da moça: o mestre lhe assegurava conhecer Coppola há anos, retirando dele uma carga significativa, não sua completude, de preocupação.
Ainda se comunicando com Lotar, o olhar mais uma vez é elevado de patamar, quando se busca, através da escrita, descrever o professor: “Melhor que qualquer descrição, porém, é vê-lo num retrato de Cagliostro feito por Chodowiecki (...)” (pág. 125). Na seqüência, uma vontade fantástica, não baseada em nenhuma percepção específica, o leva à cortina entreaberta, por onde avista pela primeira vez a “mulher alta e muito magra, esplendidamente vestida” (pág.126).
O seguir da narrativa, a partir desse primeiro encontro, se destoa da forma epistolar com que o texto estava sendo construído até então: a voz do narrador surge, focando o enredo na relação, ainda fortemente sensorial, de Natanael com a suposta filha de Spalanzani. Após o primeiro momento, em que ele a vê por trás das cortinas, outras quatro situações comporão o quadro descritivo, quase visual, de Olímpia.
Novamente, o estranho leva, literalmente, Natanael a uma nova experiência com Olímpia: sua casa é queimada, mas por alguma razão, oculta dentro da própria narrativa, seus pertences foram salvos e já alocados em um quarto que os amigos haviam lhe arrumado. Ainda sem muita curiosidade, nota que Spalanzani mora em frente; chama-lhe atenção, contudo, a postura da filha do professor, sentada na cadeira exatamente quando da primeira vez.
Após reconhecer não ser Coppola o velho amigo do pai, Natanael compra um binóculo do vendedor de barômetros. O acontecimento é importante e constitui fator decisivo para compreender as futuras experiências e revoluções internas que ocorrerão no jovem: o binóculo não apenas é um mecanismo, são os olhos ficcionais; olhos que permitirão ver, através das lentes, o que se deseja, mesmo inconscientemente. Os impulsos do personagem o encaminham ao seu próprio desconhecido, internalizado e não-visível: há a materialização do próprio eu, Natanael, em Olímpia.
O terceiro encontro de Natanael com Olímpia revela, nas entrelinhas, a verdadeira motivação, calcada psicologicamente, do fascínio do jovem pelo autômato: o mecanismo representa a possibilidade da voz do jovem ecoar; é o desejo narcísico de Natanael que sustenta, através do olhar, da possibilidade de enxergar através da cortina com o binóculo aquela criatura de olhos “hirtos e mortos”, a relação emocional não-unívoca de ambos
Sem querer, olhou para o quarto de Spalanzani; como de costume, Olímpia estava sentada diante da mesinha, os braços esticados, as mãos cruzadas. Era a primeira vez que Natanael contemplava o semblante de Olímpia, de maravilhosos traços. Apenas os olhos pareciam-lhe estranhamente hirtos e mortos. Mas à medida que a contemplava com mais cuidado, tinha a sensação de que dos olhos de Olímpia saíam úmidos raios d luar. Parecia que só agora o seu poder de visão fora estimulado; cada vez mais vivos flamejavam os seus olhares (pág. 135)
Natanael adapta seus olhos àquilo que busca; a insistência de Hoffman em frisar o fator coincidência nos olhares do jovem para Olímpia ressalta justamente o que está no subconsciente dele: a vontade, escondida de si mesmo, de buscar a aprovação silenciosa do autômato, de ressoar suas próprias verdades em algo (ou alguém) que se tenha certeza concordará com o que está sendo dito. O mecanismo é a ilustração desse ser, espelho narcísico, passivo, nessa “troca”.
A relação de dependência de Natanael com o mecanismo é tão grande e arraigada, que quando do quarto encontro, as cortinas estavam fechadas, ele permanece dias ininterruptos à janela, esperando que pudesse ver, e assim reiniciar o processo narcísico, Olímpia. O voyeurismo, presente no abrir e fechar das cortinas, é a encenação do desejo, que se esconde, necessariamente, para que haja carga de mistério em densidade suficiente e a fantasia perdure.
O amor obsessivo de Natanael é sustentado pela própria necessidade de se amar. Tão traumática foi a infância, condensada mais significativamente na morte do pai e na historieta do homem da areia, que qualquer indício de inverdade da “humanidade” de Olímpia lhe era rebarbativo. A aparição de Coppola traz à tona seus problemas infantis, que pautaram, provavelmente, toda a sua vida, mas ficaram à sombra de outras preocupações e traumas.
Essa postura anti-perceptiva se torna evidente na quinta aparição de Olímpia, na festa promovida por Spalanzani. O físico e os gestos, por mais que para ele fossem graciosos, eram estranhos aos demais. Os movimentos do autômato são ressaltados, assim como a certeza de Natanael de que ela também o amava. Mesmo que não a vissem como uma máquina, os demais convidados a notavam estranha e inerte aos acontecimentos exteriores, desligada e estúpida.
Ah! Agora podia perceber como ela o olhava com languidez e como seu olhar enternecido, que penetrava e inflamava todo o seu ser, exprimia antecipadamente cada nuance de seu canto. Seus trinados pareciam a Natanael o júbilo celestial do espírito transformado pelo amor, e quando finalmente a cadência do longo e último vocalise ressoou pelo salão, ele não pôde mais se conter e, como se estrangulado por dois braços apaixonados, exclamou extasiado: “Olímpia!” Todos se voltaram para ele, e muitos começaram a rir. O organista da catedral, porém, mostrou um rosto ainda mais sinistro do que o habitual e disse apenas: “Bem, bem!” (pág. 137).
O estranho, no texto de Hoffman representado pelo mecanismo, Olímpia, atua como espelho projetor do próprio subconsciente. O suicídio de Natanael é reflexo dessas projeções: seu tormento é oriundo do encontro consigo mesmo, do encarar-se pela primeira vez e enxergar a si próprio; como se por um binóculo, aquela realidade é específica e o leque se estende a múltiplas interpretações.
pedaço de um trabalho de LitComp. 'eterna falta do que falar...'