sábado, 29 de março de 2008

Post 29: A traição das imagens.


René Magritte, pintor de origem belga, surrealismo e ilusionismo correndo nas veias e nos neurônios de gênio do século XIX.

A obra “La trahison des images” é uma das mais intrigantes do artista em questão: apresenta a imagem de um cachimbo, todavia com uma espécie de legenda dizendo que aquilo não é o que parece. “Ceci n'est pas une pipe”, cuja tradução é “isto não é um cachimbo”.

Em âmbito estético, a pintura apresenta uma linearidade de cores. Estas estão em um mesmo plano tonal: o marrom e o preto, ou seja, a predominância de um matiz escuro constitui a obra.

A traição das imagens. Uma expressão intimamente Platônica, convenhamos. As aparências, τὰ φαινόμενα, agindo como um engodo em relação à sociedade, o conceito de αλὴθεια sendo execrado por uma representação, enfim, a arte focada por uma óptica imaterial, sem sentido e sem serventia para o homem, visto o teor prescritivo do discurso de Platão.

Para ele, a arte deveria se encaixar em uma relação triádica entre o justo, o belo e o bom – o princípio de καλοκαγαθία. Todavia, se ela tem um caráter enganador, falso, não deveria existir, já que transviaria o objetivo da παιδεία. E como a παιδεία platônica valorizava a razão, não haveria espaço para a presença dos mitos e abstrações artísticas.

O artista insiste na negação da aparência. Afinal, não se pode utilizar um cachimbo “representado”, pintado, imitado. A arte seria uma reprodução da εἱδός, de uma Idéia prototípica.

Magritte esvazia o recheio de uma realidade nessa obra; a materialidade, o físico é refutado por uma frase. Uma expressão é responsável pela quebra de perspectivas estéticas e visuais: N'est pas. É uma luta contra a tendência ilusória dos olhos, um rompimento da sensibilidade inconsciente.

Parafraseando Michel Haar sobre o pensamento platônico acerca do ideal de mimesis, “a imagem artística não é mais que um reflexo do num espelho, uma ilusão sem substância.” Mas o que é mais curioso é que essa ilusão sem substância é que dá a concretude do momento, promove o processo de assimilação e reminiscências, faz com que as sinapses cerebrais aumentem a velocidade, tudo isso pelo simples prazer. O prazer aristotélico de uma representação natural, ilimitada.

É melhor preferir o impossível que é verossímil ao possível que é inacreditável.” Apoiado, Aristóteles.


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αλὴθεια
(alètheia) - aquilo que não é esquecido; verdade.
καλοκαγαθία
(kalokagathía) - princípio do bem e da beleza, bastante utilizado na literatura homérica e de grande valor na cultura artística ocidental.
παιδεία
(paidéia) - modelo de educação.
εἱδός
(eidós) - Idéia.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Post 28: Sobre os dias (tardes e almoços) com a Martina.

Deixando as divagações de lado...

A amizade está nas demonstrações mais simples e espontâneas de afeto. É bom não ter momentos específicos e prezar todo o tempo que ela esteve (está e estará) presente. Acho que uma boa amizade consiste nisso: a validade de tudo (até as povas e o latim).

Perguntando qual a próxima aula ou rindo do "velhinho que morreu na própria cama" e do pobre despojado, os dias passam com uma rapidez que traz saudade da lentidão do ócio. Saudade prematura. Saudade da "família": tão díspares e tão complementares. E eu achando que tinha encontrado todas as pessoas fundamentais na minha vida (pensando como um velho, sempre), sem imaginar a "reviravolta" de pensamento e atitude que uma faculdade (que não estava nos meus planos) faria em mim. O mérito da mudança não é só da Martina, mas das outras meninas também... elas ficam pra outro dia. Today is Tina's day.

"Retribuição" não é a palavra certa e muito menos o motivo de eu escrever sobre/para ela hoje. Mas sabe quando alguém consegue fazer seu dia feliz sem querer? Hoje ela me fez feliz, e nem sei se percebeu como o que ela disse me afetou de maneira positiva (aposto que não). Em meio a toda bobeira e a risada de todos os dias, há uma sutileza e uma pureza de sentimentos e demonstrações que não se limitam a palavras e não buscam qualquer interesse. Ela simplesmente está ali: tomando café ou andando avoada pelos corredores.

Ah... Martina, obrigado! Amo você.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Post 27: Rotina letrada de uma Póvoa.

Pegando o gancho do post sobre rotina do Guilherme:


Os dias naquela faculdade de Letras são realmente pitorescos e encantadores.

Às segundas, lapidar a alma e o cérebro com Constança Hertz e suas comparações magistrais entre história, arte e literatura e aplaudir de pé a experiência e a docilidade latina da Cecília Araújo.

Às terças, acordar ao som imaginário de “La vie em rose”, piafiana, para encontrar a azulidade preciosa da Juliana Novo e absorver, agradavelmente, – sim, lingüística tornou-se algo suportável pra mim – a docilidade ocular de Chomsky e apreender a classe e inteligência sublimes da Ana Alencar durante 4 tempos.

Às quartas, tentar não se desesperar com Silvia Rodrigues. Esse é o lema do Português 3: “Laissez-faire, Laissez-passet, le monde va de lui même.” Acho que só sendo muito iluminista pra tentar não se impacientar com tal suplício. O que alivia é a amabilidade e simpatia da Silvia. Caso contrário, seriam encontrados vários corpos no vão do terceiro andar do bloco H.

Às quintas, novamente ouço imaginariamente Edith Piaf me acordando: a claridade acompanhando o giz na H-212.

Às sextas, a minha paixãozinha de cada dia: Grego. Absolutamente sem adjetivos existentes nos princípios da Língua Portuguesa para caracterizá-lo.

Aulas à parte, O CORREDOR. É um tal de sincretismo, samba-do-crioulo-doido. Encontra-se latinistas, literatos, lingüistas, estudantes de hebraico, árabe, inglês, alemão e blablabla. Danielle Corpas tomando café e fumando seu cigarrinho, Eleonora Ziller com cara de quem já tá preparada pra revolução, Alberto Pucheu e seu inseparável Caio Meira com cara de quem tá esperando Platão reencarnar, Dinah Callou com aquela expressão blasé de “humpf! Quem são vocês, meros graduandos inúteis?”, Maluh Guimarães sendo alvo dos paparazzi, enfim, a Letras.

Guilherme sendo odiado, eu sendo sei-lá-o-quê, adorável Martina com cara de “ahn? Onde estou?”, Maline filosofando maravilhosamente, e Juliana com raiva de uma certa latinista cruel (assino embaixo).

Ah! E como poderia esquecer de CC? Aquela que transformou o primeiro período em uma incógnita, em um desespero coletivo.

Mas o que mais dá cor àquela faculdade é o pão-de-queijo com cafezinho pingado. Fato consumado. E, é claro, a fumaça nicotinada da minha estimada Danielle Corpas. Eterna. Diva. Literata.

Post 26: Morpheu + edredon = diazinho este.

Esse dia nasceu pra ser curtinho. Mas ele relutava em relação a sua aparente correria temporal. A chuva facilitava o processo, era o input de tal ilusão. O dia nasceu pra ter vinte e quatro horas, mas esse era diferente. Sensação corrida e inerte.

Esse dia era acinzentado. Gosto de guarda-chuva. Cheiro de água no asfalto. Pessoas estampando na face o desânimo inerente ao espírito pluvial das correntezas sonolentas matutinas.

O ponto-de-ônibus com seus braços cruzados. Pernas tensionadas. Um friozinho psicológico batia, sem explicações. Estava abafado, mas a chuva transforma e transvia sensações.

Hoje é dia de amálgama de Morpheu com edredon. E de cronicazinha curta. Só pra tirar o excesso de divagações dessas minhas sinapses infiéis.

sábado, 22 de março de 2008

Post 25: Sobre convicções, dúvidas, riscos e piedade.

Convicções são suficientes para se calcar um objetivo, e tê-lo como meta. Dúvidas são suficientes para que essa jornada se torne menos impossível (e até mesmo menos ingrata). Mas até que ponto chegar para que suas ideologias sejam preservadas e, assim, evitar um ideal estático e plástico?

*

É fácil viver no limiar e se fechar a qualquer risco, negando a validade de propósitos e aspirações que não sejam ou que apenas não comunguem da mesma raiz lógica dos seus. Viver temerariamente me assusta: a possibilidade da perda e da falta de opções são as razões de uma insônia constante. Evitar as pedras do caminho pode ser a opção mais cômoda, mas não é a mais acertada (essas metáforas-clichê são odiosas, mas...).

A máxima de que quem mais arrisca mais ganha, e por conseqüência sente menos as perdas, é inegável. “Arriscar” é uma banalidade hoje em dia: virou desculpa para determinados atos e, em relação a alguns dogmas, perdeu o caráter social e libertário. Duas mulheres, por exemplo, com papéis familiares totalmente opostos (uma é dona-de-casa e a outra independe do marido), lidarão de maneira diferente com uma traição: a primeira perde tudo (mesmo que ela permaneça no relacionamento) já que apostou suas fichas em apenas um aspecto dentre infinitas possibilidades de “como se viver”. Previsível.

O X de toda a história (e do exemplo fraco) é a conduta da segunda mulher: ter estabilidade financeira e ter sido traída não faz dela uma guerreira invencível (mesmo que ela acredite nisso) cujas culpas e atos irresponsáveis serão perdoados. Sem fazer nenhuma generalização, é inerente ao homem a busca por piedade quando se está “por baixo”. Piedade, porém, não é liberdade (eu ia fazer uma explicação bonita sobre o sufixo -dade... mas deixa pra lá!).

Simplificando a idéia complicada: ser livre ou não ter nada (aparentemente, as únicas opções) levam a loucura. O mundo é dos insanos.

*

Seguir em frente ou mudar radicalmente os planos? Dúvida.

terça-feira, 18 de março de 2008

Post 24: Sobre rotina e saudade.

E as aulas e a rotina voltaram: esnobar lingüística, odiar latim, comer no CETEM sem motivo (e também o macarrão do CT), rir, encontrar a Dostô na biblioteca, falar mal dos banheiros, topar com a Callou, colar, ver a Ju assitir Latim mais uma vez, venerar a Eleonora e ouvir a Bia e a Martina falarem do Pucheu. Endeusar a Malu, ler “Gêneros Literários” (hahahahaha), falar de cinema, ir de ônibus com a Pamela, voltar de ônibus com a Pamela, ouvir a Póvoa falar de seus amores e decepções no corredor, entrar em qualquer aula, aproveitar o breakfast dos congressos que nós não pagamos nem assistimos (saudade dos da anglo-germânica), dizer que a CC tá gorda, inventar apelidos, encontrar a Marilyn, comer pão de queijo e tomar café, não saber onde estão meus filmes (é verdade que a maioria deles está com a Luciana), ter papos televisivos com a Maline, dormir em qualquer canto, falar de amor, falar dos outros, falar da vida, falar dos planos, falar de tudo.

Saudade dessa rotina que um dia vai ser só saudade.


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Nada muito interessante pra dizer...

segunda-feira, 17 de março de 2008

Post 23: Distração mais-que-perfeita.

E tudo começou por uma distração. Não havia algo para ser feito, o tempo seria desperdiçado de uma forma imperdoável. E não seria um tempo de duas horas, mas sim um de cinco meses.

Uni-du-ni-tê: eu escolheria uma das duas salas. Optei pela segunda. Meu sexto-sentido, como sempre, sendo meu companheiro indispensável de todos os dias.

E lá estava. A apresentação, eu havia perdido. Não sabia, inicialmente, o nome, de onde vinha, nada. Nem dali eu era. Estava me comportando como um ectoplasma de uma amiga minha. Depois as informações foram chegando, paulatinamente. Fiquei sabendo, inclusive, que Ela tinha facilidade de armazenar cálcio no corpo e, por isso, tinha de beber muita água. Agora, sim, está explicada a origem daqueles olhos marítimos, capitolinos. Água que errou o caminho, resultando numa íris de pincel.

Meu cérebro só conseguia fazer sinapse direcionada: “SIGA, SIGA, SIGA; casa, casa, casa.” Precisava chegar logo em casa para fazer uma alteração não somente de Lingüística, e, sim, uma modificação urgente de dínamo: é possível aliar prazer a uma disciplina que era, inicialmente, o calo do meu pé. Seriam cinco longos ou curtos meses, dependendo do ponto crucial da situação: Ela ou ela.

As abordagens eram feitas de uma forma magistral. Sim, a magistra estava transformando o meu ponto fraco acadêmico em uma abstração sublime. Soubliá: pontada. Era só isso o que eu sentia. Pontada.

A mousa de Chomsky, a Helena gerativista, a Palas Atena da Sintaxe. O princípio saussureano da linearidade da língua agia como um aedo ou rapsodo, cantando poeticamente.

Foi assim: pá-pum! Enpathía. “Ad-miração” indo na onda da imutabilidade do signo.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Post 22: Sobre Poesia (II)

Aniversário


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!



Fernando Pessoa


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Para uma grande professora!