quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Post 50: A vermelhidão dos cravos que coibiu a pólvora.

E era, sobretudo, um ato de revolução contida em minhas partes de(s)compostas pelas fasces supremas que pesavam na percepção que me cabia.

Coube um dia. Há um passar de tempo não atual. E não tão próximo. Trituraram os meus princípios e leis internas. Decapitaram. Mutilaram a minha ordem.

Mas irrompi através de três letras, mesmo sendo um ente irrisório diante tanta magnificência ditatorial. Flostriei em tentativas, suspenso pelo fio molestado da utopia-não-utopia. Utopia para eles, esses alguns companheiros desnaturados. Plausível para mim. Perdição para o sistema.

Minhas artérias e veias carregaram a densidade de um sangue ávido por eutimia. Estopim através da audição: Rádio Renascença foi incumbida por transpassar o nosso gesto recôndito.

A fulguração lunar observou o nosso embate, abastecendo e fortificando os raios solares que nasceriam no após. Sem morte em superfície. Com a vida disparada na vermelhidão dos cravos que coibiram a pólvora.

Festejo popular. Populares em frêmito regozijo clamando por independência não auto-determinada em espasmos de anacronismo.

E os paladinos jorravam na epiderme do terceiro continente mais extenso que um dia já fez Pangéia: armas empinadas e ruidosas em terras subestimadas que promulgam indagações perdidas e póstumas – deixai fazer, deixai passar, o mundo corre por si mesmo, companheiros militares? Haverá consciência auto-determinada ou o processo trovejará em esguicho de radicalismo?

Necessitávamos de uma transição. Queríamos atravessar com segurança a margem do rio caudaloso de nossa existência. Pedíamos, a nós mesmos, o deslizar paulatino, suave. Acolhedor.

Mas abandonamos. Abandonamos como os cães que se sentem feridos. Desamparamos uma legião e desertamos a história que se iniciara em 1415.

Que Ceuta nos perdôe e que tenhamos Pedros e Paulas velando por nossos cacos. Por meus cacos perdidos em África.

Assim seja.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Post 49: Coisas que ficaram pelo caminho.

Pensamentos rápidos e furtivos...

Perdas são tão necessárias quanto obrigatórias. Não há nada que dure eternamente (mesmo que os mais românticos e menos céticos digam o contrário); não há vitalidade nem energia suficiente que ilumine todos os cantos e esquinas; não há força que nos proteja, ou revele, e guarde tudo de bonito que porventura tenha acontecido. O bonito também morre em algum lugar.

Resguardando o que é realmente importante, as coisas tendem a ficar, inevitavelmente, pelo caminho: quando não as perdemos, elas se perdem de nós. E num delírio súbito, há a imensa vontade de congelar tudo o que é conscientemente distante, mas nos fala em algum ponto; um egoísmo medroso e desculpável – fugir da solidão normalmente leva a condutas não-perceptivéis.

Enfim, esse desabamento de idéias surgiu de um vocábulo africano (não sei muito sobre a origem dele, então... desculpe!): Sankofa.

Sankofa: nunca é tarde para voltar atrás e recolher o que ficou pelo caminho.

Seria mais fácil reclamar e se lamuriar do que perceber que é possível andar contra o vento?

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Vou aparecer mais freqüentemente!

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Post 48: Nihil demais.

E eu só queria dez minutos. Dez minutos estagnados em cada olho para poder compreender o mistério da íris e da retina do ser humano.


O dos cães e cavalos, já descobri: é o reflexo mareado das intenções expostas pela córnea brilhante. Ou não.


domingo, 13 de julho de 2008

Post 47: O homem da areia: o fantástico-estranho de Hoffman.

Intrínseca à literatura de Hoffman, há atuante o comportamento do homem, em seu caráter natural, quanto ao sensorial. Suas reações e inquietações são fruto da possibilidade ou não do olhar, como sensação física que engloba todos os sentidos suscetíveis ao corpo humano; sensações cuja origem é o mecanismo, representado pela personagem Olímpia, de O homem da areia.

O texto é permeado pela necessidade de se comprovar, através da visão, fatos cotidianos; não apenas aspectos físicos, mas também as sensações mais internalizadas. Os olhos, principalmente, seriam um espelho que tanto reflete o que está ao alcance da visão quanto revela ao mundo o que há por dentro do indivíduo. Logo no começo da narrativa, Natanael, em carta, relata a Lotar seu atual estado de ânimo face aos recentes acontecimentos

Se ao menos você estivesse aqui, poderia ver com seus próprios olhos; mas, tenho certeza, certamente vai me considerar um supersticioso visionário (pág. 113).

A carga semântica buscada por Hoffman, quanto à importância do olhar, é evidenciada na escolha vocabular, em períodos cuja situação do “ver” é posta como meio superior aos demais (as palavras, ditas e escritas, por exemplo) de se revelar verdades, em metáforas, como a da cortina, etc. A possibilidade de ver, não apenas enxergar, é tão fundamental, que mesmo a voz narrativa se adapta à idéia principal do texto: há a mudança do eu, onipresente, para um narrador, “o autor”, que teria, supostamente, evidenciado todo o desenlace do enredo. Essa mudança é traço da literatura fantástica, como estilo: as formas estruturais realistas são contestadas via a arte.

O encontro com um vendedor de barômetros, a quem expulsa, é desencadeador do processo de reflexão do jovem; ele se lembra de Coppelius, advogado, amigo de seu pai, que almoçava em sua casa com freqüência. Como se uma porta fosse aberta, jorra de sua memória recordações que o amedrontavam na infância: o homem da areia, criatura fantástica que, o então menino, associava ao advogado. O olhar retorna ao foco da narrativa quando Natanael rememora a história contada pela ama-seca; o personagem ficcional jogaria areia nos olhos das crianças que se recusariam a dormir.

A aparição do homem lhe manifestava sensação de mau presságio; o vendedor, Coppola, reanimara em Natanael a morte violenta do pai, supostamente causada por Coppelius. A partir desse fato, sucessivos acontecimentos interligados encaminham a figura do jovem, separado da família devido aos estudos, a Olímpia. A princípio, conhece Spalanzani, seu professor, pai da moça: o mestre lhe assegurava conhecer Coppola há anos, retirando dele uma carga significativa, não sua completude, de preocupação.

Ainda se comunicando com Lotar, o olhar mais uma vez é elevado de patamar, quando se busca, através da escrita, descrever o professor: “Melhor que qualquer descrição, porém, é vê-lo num retrato de Cagliostro feito por Chodowiecki (...)” (pág. 125). Na seqüência, uma vontade fantástica, não baseada em nenhuma percepção específica, o leva à cortina entreaberta, por onde avista pela primeira vez a “mulher alta e muito magra, esplendidamente vestida” (pág.126).

O seguir da narrativa, a partir desse primeiro encontro, se destoa da forma epistolar com que o texto estava sendo construído até então: a voz do narrador surge, focando o enredo na relação, ainda fortemente sensorial, de Natanael com a suposta filha de Spalanzani. Após o primeiro momento, em que ele a vê por trás das cortinas, outras quatro situações comporão o quadro descritivo, quase visual, de Olímpia.

Novamente, o estranho leva, literalmente, Natanael a uma nova experiência com Olímpia: sua casa é queimada, mas por alguma razão, oculta dentro da própria narrativa, seus pertences foram salvos e já alocados em um quarto que os amigos haviam lhe arrumado. Ainda sem muita curiosidade, nota que Spalanzani mora em frente; chama-lhe atenção, contudo, a postura da filha do professor, sentada na cadeira exatamente quando da primeira vez.

Após reconhecer não ser Coppola o velho amigo do pai, Natanael compra um binóculo do vendedor de barômetros. O acontecimento é importante e constitui fator decisivo para compreender as futuras experiências e revoluções internas que ocorrerão no jovem: o binóculo não apenas é um mecanismo, são os olhos ficcionais; olhos que permitirão ver, através das lentes, o que se deseja, mesmo inconscientemente. Os impulsos do personagem o encaminham ao seu próprio desconhecido, internalizado e não-visível: há a materialização do próprio eu, Natanael, em Olímpia.

O terceiro encontro de Natanael com Olímpia revela, nas entrelinhas, a verdadeira motivação, calcada psicologicamente, do fascínio do jovem pelo autômato: o mecanismo representa a possibilidade da voz do jovem ecoar; é o desejo narcísico de Natanael que sustenta, através do olhar, da possibilidade de enxergar através da cortina com o binóculo aquela criatura de olhos “hirtos e mortos”, a relação emocional não-unívoca de ambos

Sem querer, olhou para o quarto de Spalanzani; como de costume, Olímpia estava sentada diante da mesinha, os braços esticados, as mãos cruzadas. Era a primeira vez que Natanael contemplava o semblante de Olímpia, de maravilhosos traços. Apenas os olhos pareciam-lhe estranhamente hirtos e mortos. Mas à medida que a contemplava com mais cuidado, tinha a sensação de que dos olhos de Olímpia saíam úmidos raios d luar. Parecia que só agora o seu poder de visão fora estimulado; cada vez mais vivos flamejavam os seus olhares (pág. 135)

Natanael adapta seus olhos àquilo que busca; a insistência de Hoffman em frisar o fator coincidência nos olhares do jovem para Olímpia ressalta justamente o que está no subconsciente dele: a vontade, escondida de si mesmo, de buscar a aprovação silenciosa do autômato, de ressoar suas próprias verdades em algo (ou alguém) que se tenha certeza concordará com o que está sendo dito. O mecanismo é a ilustração desse ser, espelho narcísico, passivo, nessa “troca”.

A relação de dependência de Natanael com o mecanismo é tão grande e arraigada, que quando do quarto encontro, as cortinas estavam fechadas, ele permanece dias ininterruptos à janela, esperando que pudesse ver, e assim reiniciar o processo narcísico, Olímpia. O voyeurismo, presente no abrir e fechar das cortinas, é a encenação do desejo, que se esconde, necessariamente, para que haja carga de mistério em densidade suficiente e a fantasia perdure.

O amor obsessivo de Natanael é sustentado pela própria necessidade de se amar. Tão traumática foi a infância, condensada mais significativamente na morte do pai e na historieta do homem da areia, que qualquer indício de inverdade da “humanidade” de Olímpia lhe era rebarbativo. A aparição de Coppola traz à tona seus problemas infantis, que pautaram, provavelmente, toda a sua vida, mas ficaram à sombra de outras preocupações e traumas.

Essa postura anti-perceptiva se torna evidente na quinta aparição de Olímpia, na festa promovida por Spalanzani. O físico e os gestos, por mais que para ele fossem graciosos, eram estranhos aos demais. Os movimentos do autômato são ressaltados, assim como a certeza de Natanael de que ela também o amava. Mesmo que não a vissem como uma máquina, os demais convidados a notavam estranha e inerte aos acontecimentos exteriores, desligada e estúpida.

Ah! Agora podia perceber como ela o olhava com languidez e como seu olhar enternecido, que penetrava e inflamava todo o seu ser, exprimia antecipadamente cada nuance de seu canto. Seus trinados pareciam a Natanael o júbilo celestial do espírito transformado pelo amor, e quando finalmente a cadência do longo e último vocalise ressoou pelo salão, ele não pôde mais se conter e, como se estrangulado por dois braços apaixonados, exclamou extasiado: “Olímpia!” Todos se voltaram para ele, e muitos começaram a rir. O organista da catedral, porém, mostrou um rosto ainda mais sinistro do que o habitual e disse apenas: “Bem, bem!” (pág. 137).

O estranho, no texto de Hoffman representado pelo mecanismo, Olímpia, atua como espelho projetor do próprio subconsciente. O suicídio de Natanael é reflexo dessas projeções: seu tormento é oriundo do encontro consigo mesmo, do encarar-se pela primeira vez e enxergar a si próprio; como se por um binóculo, aquela realidade é específica e o leque se estende a múltiplas interpretações.



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pedaço de um trabalho de LitComp. 'eterna falta do que falar...'

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Post 46 - Ana Alencar e a felicidade clandestina: sensações de uma Teoria Literária tremeluzente.

Cabelos, mãos e caneta com ares franceses, sotaquezinho palpitando as artérias e aqueles olhos azuis que penetram nas sinapses e as cessam. Deixam-nas suspensas e apoiadas pela larguidão do sorriso pueril.

Colo bonito e acolhedor. A cadeira pede encarecidamente para ser utilizada. As paredes colocam os óculos para poder enxergá-la melhor. Aquarelas de Magritte e Monet surgem para tentar recriá-la, inutilmente. Ceci n'est pas une pipe, mais une des perfections littéraire. Et il est l'un des perfections humaines. Hu-mai-nes. Não sei separar sílabas em francês. Mas também Ana Alencar não foi feita para ser dividida. Justificado, pois.

Sartre ressuscita, abraçado com Beauvoir para ver Ana Maria Amorim de Alencar expirar contentamento pelas frestas e poros de seu corpo. Aninha é ólbos, eutychía, eudaimonía carnalizadas.

Flaubert, Gide e Baudelaire reúnem-se no corredor para vê-la passando com seu jeito miúdo e gigantesco; Kafka escreve uma carta ao pai relatando o processo de sua metamorfose após sentir a sua presença serotonesca, e Clarice Lispector digita uma quinta história a partir de um suddenly I see - ''her face is the map of the world.''




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Vontade de passar pela Champs Elyseés e cantarolar oubliè tes erreurs et tes peurs, je les efface...com direito a uma boina francesa para retirá-la quando aquele sorriso passar apoiado em colo de bailarina.

Post 45: Saiu. Tout à coup.

Tem algo instalado e estalando na garganta. Há algumas horas atrás, eu desconhecia. Agora, em um hoje-plus-que-parfait, continuo a não identificar. Linhas pontilhadas começam a se esboçar na frente dos antolhos que tirei há pouco.

É uma nitidez de pós-cirurgia ocular. Eu vejo, mas não enxergo. Ouço, mas não capto. Toco. E lembro.

Mas lembro de que, deuses? Três pontos.

Lembro da ignorância e subumanidade que existe in. Homines non sapientes sunt.
Foi somente estorieta.

Exijo a saída do labirinto. Almejo traços apolíneos, pois.






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E a Fernandinha, ἀγαπημένη μοῦ, vai pra Grécia. Só volta em Setembro. * λάκκος *

Post 44: Hélade e Helenistas.

Em uma noite de quinta-feira, pelos passares-de-tempo de julho, Mnemosýne trouxe até mim uma das efemérides mais significativas de todos os meus dias: a primeira semana na Universidade, mais precisamente as incipientes aulas de Grego Genérico.

A professora era algo pitoresco. Segundo o dicionário, “graciosamente original”. Sua voz estridente, porém chamativa, era uma das principais atrações da classe. Eu e um amigo, Guilherme, olhamo-nos e efetuamos uma comunicação mais por telepatia do que por lexias: “essa é a voz dela mesmo ou é sacanagem?”.

Não, não era sacanagem. Estava muito longe de ser, afinal, além dela ser professora de uma disciplina aparentemente tão exótica e hermética – hermética no sentido mais stricto sensu possível, isto é, relativo ao deus Hermes, o mensageiro -, ela ainda era evangélica. Definitivamente, não era sacanagem.

Pois bem. O choque inicial: o alfabeto grego. Aquilo me lembrava algo barroco. Mas me encantava: eu queria escrever tudo, absolutamente tudo com os caracteres gregos. Nas minhas folhas vinha escrito προφεσσορα αλεσσανδρα, ao invés de διδασκάλε ἀλέχανδρα. Um desastre voltado para a minha mais nova paixão.

Passada a fase inicial de alfabetização, vieram as declinações. Eu tinha uma ligeira impressão de que aquilo tudo causava asco nos alunos, mas não entendia o porquê. Aliás, entendia sim. Mas a simpatia da professora fazia com que os empecilhos helênicos não fossem tão poderosos assim. E nada me tira da cabeça que a voz também exercia algum papel fixador de nádegas naquela sala infestada de musas, daimons, deuses e...declinações.

Um ano se passou e o Grego continuou sendo a minha efeméride das quartas e sextas. Era uma sensação elástica, de ida e volta, volta e ida. Assim como na música de Alkistis Protopsalti, “Apéranto Kenó”: “sinexia fevgo makria sou kai olo erxomai - sempre distancio-me de você e volto inteiramente”.

Em finais de 2007, Alessandra Viegas, a “didaskále mou”, apresenta-me mais duas efemérides: Fernanda Lemos de Lima e Dulci Nascimento. Foi pá-pum. Empatia súbita que se transformou em uma admiração incontrolável. Como diria Theóphile Gautier: 'admirar é amar com o cérebro'. Apoiado, apoiado. Mas deixemo-nas nessas entrelinhas plenas de verbo agapáo para que uma outra crise de abstinência não venha à tona.

Falando em abstinência, ela chegou no início de 2008, com o término do curso de Grego Genérico. Eu havia de tomar alguma providência; caso contrário, tremores, visão turva e alucinações tomariam o meu corpo.

E tomei: fui assistir a algumas aulas de Grego Específico com a professora Tatiana Ribeiro.

Inicialmente, eu era só ouvinte, receptora de seus ensinamentos singulares. Mas através da extrema seriedade acadêmica e boa-vontade da mesma, acabei sendo inscrita e comecei mais uma graduação: a de Português-Grego.

Linhas pontilhadas foram surgindo sem nem eu mesma perceber. Uma paixão veio à tona, com a tempestade das ondas, e, agora, com a calmaria da maré, o amor vem chegando mansinho, mansinho.

A paixão dura dois anos. O amor, a vida inteira. E o Grego...ah, o Grego. Que Caos, Tártaro, Gaia e Urano conservem sempre as minhas musas para que a pira não se apague.

E ela não há de se apagar.