E não era assim que acontecia em todos os dias, porque Ela não tem jeito de quem cai na rotina. Aliás, Ela e rotina são protótipos completamente divergentes. A não ser pelo trabalho, o seu tão sedutor e admirável labor de cada dia.
Eu queria vê-la a partir do seu prisma humano. Na minha perspectiva sacralizada e idealizada, o espaço para os atos escatológicos e corriqueiros não existia. E foi a partir dessa madrugada que eu coloquei minha sinapse no seu lado menos preceptístico. Agora, o impressionismo impera.
Ela deveria chegar no seu apartamento nas Laranjeiras lá pelas 16:30, 17:00, toda apressada para um não-sei-o-quê. Deveria colocar as chaves do carro – uma Palio prata – e do apartamento sobre o aparador da sala, sentar no seu sofá daquele jeito tipo chinês, tirar as sandálias e arrumá-las metodicamente juntas perpendicularmente ao móvel onde estaria sentada, e chamar a empregada.
- “Cadê a Cecília?”
- “Tá no quarto, falando no telefone com a amiguinha do colégio.”
- “Ah sim. Traz um copo de suco pra mim?”
- “Sim, senhora.”
Agora ela deveria ligar a TV. Procurar algum jornal pra saber as notícias do dia. Trocar freneticamente de canal. Ao não obter sucesso em sua busca midiática, deveria folhear um livro sobre Teoria do Efeito que estaria perto do abajur.
Ao ir conversando com a empregada e lendo, ao mesmo tempo, – sim, ela parecia ser hiperativa – ela deveria pegar o “trakinas” deixado sobre o móvel da sala. “Trakinas” de morango com chocolate deveria ser o seu predileto.
De repente, a filha surgiria na sala.
- “Mãe, me dá um dinheiro pra eu ir no cinema com a Rebeca amanhã?”
- “ Como é que você vai, Cecília?”
- “Eu pego o metrô rapidinho, mãe!”
- “Que horas?”
- “Ah, umas 16:00...”
- “Você volta antes das 18:30, hein!”
- “Iiiih, tá bom, mãe! Vai ou não vai dar o dinheiro?”
Ela deveria abrir a carteira com o seu jeito desajeitado, preocupado e, certamente, ligaria pra filha no dia seguinte pra saber se ela chegou bem.
Depois de folhear mais um pouco o seu livro sobre Teoria do Efeito, ela deveria fechá-lo e olhar, sem rumo, para o chão. “Ééééé...”
Uma ducha a esperaria. Quente, bem quente. E, é claro, ao som afinadinho de sua voz ao estilo “Djavan”.